• Ressignificação da Ruína: memória e identidade – O caso da sede do Afoxé Filhos de Gandhi retornar à pesquisa
  • Autor Suyanne Lima de Souza
  • Ano 2018/1
  • Localização -22.898932, -43.187502
  • Resumo

    Nos últimos anos, mais especificamente a partir de 2011, a cidade do Rio de Janeiro ganhou grande destaque no âmbito do patrimônio histórico, por conta da descoberta, através de escavações arqueológicas, do chamado Cais do Valongo na Praça Jornal do Comércio, no bairro da Gamboa. Neste desembarcaram quase um milhão de africanos, trazidos como escravos na cidade do Rio, somente entre os anos de 1779 e 1831. E instituiu-se um complexo negreiro formado de quatro áreas distintas, mas articuladas: o cais de pedra, construído em 1811; a Rua do Valongo, atual Rua Camerino, onde ficavam os principais depósitos de engorda e escritórios de vendedores de escravos; o Largo do Depósito, atual Praça dos Estivadores, principal local de comércio de escravos; o Cemitério dos Pretos novos, hoje na rua Pedro Ernesto; onde os corpos dos escravos mortos durante a viagem eram despejados e o Lazareto dos Escravos, na antiga Rua Gamboa, onde os africanos enfermos recebiam os primeiros tratamentos de saúde após chegar ao Brasil. Desde então, tem acontecido uma série de medidas em prol da recuperação e valorização da memória afro-brasileira na Zona Portuária do Rio. Entre elas, um circuito cultural, promovido pela Prefeitura do Rio, que conecta o Cais do Valongo a outros locais de memória. O edifício, alvo de intervenção deste trabalho encontra-se na Rua Camerino, n° 7/9, em frente a Praça do Estivadores e está imerso no contexto desse universo afro-brasileiro. O edifício Este caracteriza-se por ser um sobrado Eclético do início do século XX, preservado por instância municipal e atualmente encontra-se em ruínas. Quase não se tem informações ou registros acerca de sua história. Não se sabe qual foi o uso original, a data precisa de construção ou quem foi o autor do projeto. Não foram encontradas plantas arquitetônicas, tendo sido necessário realizar um levantamento no local. Hoje ele é a sede do bloco afro Afoxé Filhos de Gandhi, grupo criado em 1951, por iniciativa de trabalhadores do Porto e alguns integrantes do Ijexá Filhos de Gandhi de Salvador. Seus integrantes são, em sua maioria, pertencentes a diversas casas de Candomblé espalhadas pelo subúrbio e norte fluminense. As suas ações, canções e coreografias são fundamentadas nos ritos e práticas do Candomblé. A intervenção – Conceituação teórica e Espacialidade Propõe-se assim, uma intervenção com o intuito de conservar as suas ruínas, entendendo-as como fachada e parte das paredes internas. Visto que diante da falta de informações, estas funcionariam como registro histórico para a preservação da memória do edifício. Ao fazer esta intervenção levou-se em consideração a conceituação de Cesare Brandi em relação as ruínas, em que este afirma que é impossível fazê-la retornar a forma original, restituindo a sua unidade potencial, sem incorrer em um falso histórico. Sendo recomendado unicamente a sua conservação, já que esta é um resíduo de um momento histórico. Solá-Morales, por sua vez, em seu livro Intervenciones, faz uma crítica a tendência conservacionista dos arquitetos ao lidar com o Patrimônio histórico. Reconhece que para se intervir em uma pré-existência deve-se sim, assumir uma postura positivista voltada para pesquisas e investigações, mas também saber interpretar o edifício, a voz que fala através das construções, apresentando o seu olhar sobre o monumento de forma mais ativa, transparecendo a inventividade do arquiteto autor e não só conservando. A fim de trabalhar com estes dois pontos de vista, recorreu-se a outro autor, o Rodrigo Baeta, que defende a idéia do híbrido arquitetônico. Nesta, ele concilia a ideologia de Brandi e de Solá-Morales. Toma-se assim como ponto de partida a própria ruína, o fragmento como elemento construtivo e espacial para a concepção de uma nova arquitetura que se caracterizará como mais uma camada a ser acrescentada na pré-existência. Aliada ao conceito da relação Antigo-Novo, buscou-se pensar um espaço que contemplasse referências voltadas para a cultura afro-brasileira. E ao pensar em cultura afro-brasileira nos remetemos, instantaneamente, a idéia de coletividade, integração dos espaços. A forma como a ruína está disposta segrega em duas partes o espaço interno, sendo necessário utilizar como recurso a extração de trechos para que os espaços se conectem, entrando no paradoxo “como conservar se eu preciso extrair?”. Daí, percebeu-se a necessidade da retirada de certos trechos de um prisma de iluminação e ventilação, bastante significativo para a composição arquitetônica da pré-existência. E como forma de marcar a presença dessa ausência é proposto, então, uma abertura na cobertura, com uma clarabóia, de modo a remeter ao prisma extraído por meio da luz. Esta abertura segue presente em todos os pavimentos. Buscou-se também fazer referência a espacialidade das habitações coletivas africanas, os Compounds, que influenciaram a arquitetura dos terreiros e das senzalas. Estes se caracterizam por uma conformação espacial em que todos os ambientes se voltam para um grande pátio, onde as atividades sociais acontecem. Assim, optou-se por não ocupar os fundos do lote da Rua Camerino, constituindo assim, uma grande abertura, de pé-direto triplo, que conecta visualmente todos os pavimentos. E permite também o contato, mesmo que visual, dos pavimentos superiores com espaço do sagrado proposto no térreo. Este espaço caracteriza-se como uma espécie de arena destinada a atividades corporais, em que se aproveita as curvas de níveis existentes para se criar uma espécie de jardim escalonado que funciona tanto como uma arquibancada quanto como um altar para o orixá do tempo e da ancestralidade, Iroko, representado pela árvore Figueira-branca. Programa e usos O projeto possui um programa de cunho cultural, buscando atender as necessidades do Gandhi. É composto por um térreo que funciona como uma grande praça para oficinas corporais e de percussão, um restaurante escola de culinária africana, um ateliê de costura e adereços, sala multiuso, casa para Exu e áreas de apoio como administração, depósitos e sanitários. Materialidade Em relação a materialidade, optou-se por manter o aspecto de ruína das paredes existentes e trabalhar com materiais contemporâneos que contrastassem de modo delicado com os tijolos cerâmicos maciços da ruína, dando preferência a materiais naturais ou industriais cuja tonalidade e textura dialogasse com a ruína, como por exemplo: o piso em cimento queimado, painéis de cobogó cerâmico, revestimento de paredes em palha trançada, painéis do tipo camarão com estrutura em alumínio e vedação em bambu na fachada posterior, cobertura com estrutura de madeira aparente e telha cerâmica coberta por um forro branco de Eucatex que acompanha a curvatura da mesma e por fim, estrutura metálica presente no sistema estrutural escolhido e nas escadas. Para a restituição de trechos da ruína, utilizaram-se tijolos cerâmicos maciços de uma tonalidade diferente, mais clara do que é encontrado na pré-existência. A Intenção é que este espaço possa contribuir para a preservação e difusão da memória afro-brasileira, contribuindo, quem sabe, para o Circuito Cultural da Herança Africana.


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